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quinta-feira, 5 de maio de 2011

Relatividade e quântica com matemática do ensino médio

Um problema nos livros de divulgação em física moderna é que eles não têm meio-termo: ou não contêm nenhuma equação, sendo feitos para quem não quer nem ouvir falar de matemática, ou já são livros técnicos repletos de cálculos avançados. No entanto, há muitos leitores que não têm tanto medo de uma matemática básica, do nível do ensino médio. "Com pouquíssima matemática, pode-se ir muito além do que se conseguiria sem nenhuma", como diz o físico Ivan de Oliveira, no prefácio de um desses livros, de sua autoria (comentado mais abaixo).

Felizmente, há algumas obras que explicam relatividade, mecânica quântica e física das partículas com matemática bem simples.

A teoria da relatividade especial - aquela do E = mc2 - é a mais fácil. Do ponto de vista matemático, ela é surpreendentemente simples, a ponto de mesmo livros técnicos poderem explicá-la com a matemática do ensino médio. Um deles é "Introdução à Relatividade Especial", de Robert Resnick. A edição em português está esgotada faz tempo, mas pode ser encontrada em sebos, inclusive na Estante Virtual, ou em boas bibliotecas universitárias. Possui uma exposição clara e pode ser seguido facilmente por não-físicos sem orientação de ninguém. E está tudo lá. Relatividade não é assunto só para deuses do Olimpo.

(Obs.: o autor cometeu o descuido de pôr uma única equação diferencial na Introdução; quando a vi, levei tamanho susto que fechei o livro e adiei por um ano minha leitura antes da graduação, sem saber que todo o resto me era totalmente acessível. Ignorem-na.)

O físico Ivan de Oliveira, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, escreveu em dois volumes o "Física Moderna para iniciados, interessados e aficcionados", da Editora da Livraria da Física da USP (a capa é mostrada no início deste texto). Novamente, matemática bem básica, mas desta vez cobrindo toda a física moderna - relatividade especial e geral, mecânica quântica, física nuclear, física das partículas e até a teoria das supercordas - com uma introdução sobre a física clássica (ou seja, a de antes da relatividade e da quântica), necessária para se compreender o resto.

Em geral, esses dois volumes exigem apenas a matemática do ensino médio. Quando é preciso algo além, ela é explicada em boxes pelo texto. Na verdade, Oliveira diz, no prefácio, que quem não gosta de matemática pode simplesmente pular as equações. Há também menções no livro todo a pesquisas feitas por cientistas brasileiros. O índice dos dois volumes pode ser encontrado aqui.

Uma coisa é conhecer a física moderna por meio de genuflexões retóricas complicadas cheias de metáforas esquisitas para explicar conceitos sutis só com palavras. Outra é ter em mãos uma descrição bem mais direta com um pouquinho de matemática básica. Aí o leitor tem acesso não só a uma abordagem mais precisa, mas também é possível esclarecer muito melhor de onde vem o conhecimento físico e como as teorias são verificadas. E se capacita para poder acompanhar muito melhor outros textos de divulgação ou mesmo alguns mais avançados. Abrem-se portas. Boa viagem.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Coisas que sobrevivem ao Big-Bang

Fósseis são fascinantes porque nos contam como era o mundo antes mesmo de o próprio ser humano existir. O que dizer de objetos que testemunham eras de antes de o próprio universo como o conhecemos existir?

O "universo como o conhecemos" surgiu com o Big-Bang há 13,7 bilhões de anos, mas há várias teorias alternativas que exploram o que houve antes disso. E o que houve seria um universo em contração que, no momento do Big-Bang, teria sofrido um "ricochete" e começado a se expandir. A densidade naquele instante poderia ter atingido 1093 vezes a do chumbo.

Para testar essas teorias e ver se alguma pode substituir o modelo atual, é preciso ter acesso ao que aconteceu naquela época pré-Big-Bang, observando objetos e estruturas que tenham permanecido em nossa era. Mas o que pode ter sobrevivido a tal megaevento cósmico?

Uma resposta possível foi dada no último dia 19, num artigo de B. J. Carr, da Universidade Queen Mary de Londres, e A. Coley, da Universidade Dalhousie, em Halifax, no Canadá, publicado no ArXiv. Dizem eles que alguns buracos negros pequenos poderiam ter sobrevivido ao Big-Bang. Calcularam a massa que eles deveriam ter para que isso pudesse acontecer. Para sobreviver, eles deveriam ser tão raros que permanecessem separados durante o ricochete. Pois, normalmente, os astros colidem uns com os outros muito antes desse momento. Se os buracos negros colidirem, formarão um maior, atingirão uma densidade muito grande e sofrerão seu próprio ricochete individual, desmanchando-se.

Para isso não acontecer, eles devem tão raros que não se aproximem demais uns dos outros mesmo após uma contração tão grande do espaço como a que acontece perto do ricochete. Isso significa que eles deveriam ser muito pequenos. Os detalhes dependem do modelo cosmológico em questão, que variam enormemente. Há os que fazem alterações pequenas na teoria da relatividade geral e os que supoem novidades drásticas, como novas dimensões espaciais além das três que conhecemos (o modelo ekpirótico) ou espaço e tempo descontínuos como uma treliça (a gravidade quântica de laços).

Mas é possível extrair conclusões gerais sobre o valor dessa massa. O artigo indica que que o limite inferior é de perto de um centésimo de milésimo de grama. O superior depende de mais parâmetros, mas pode chegar a mil toneladas. No entanto, o comentário do ArXiv blog parece ter tido acesso a mais informações, pois afirma que a massa deve ser bem maior, entre algumas centenas de milhares de toneladas e algo próximo da massa do Sol, o que não é mencionado no artigo em nenhum lugar. De qualquer modo, são massas muito pequenas, pois buracos negros originam-se de estrelas bem mais massivas que o Sol.

Por enquanto, trata-se apenas de uma curiosidade, pois seria muito difícil detectar tais buracos negros minúsculos e raros - e eles podem ter sofrido uma expansão brutal e se desmanchado durante o Big-Bang, pois o período inicial de expansão do universo foi extremamente rápido. Os cosmólogos preferem procurar indícios da época pré-Big-Bang na radiação cósmica de fundo, uma radiação que permeia todo o cosmo e que contém informações sobre épocas muito remotas. Aliás, no mesmo dia 19 saiu outro artigo no ArXiv que explora as características desses indícios e como se poderia distinguir os diversos modelos por meio dela (para quando nossa tecnologia tiver precisão suficiente para identificar esses indícios, se existirem mesmo).

terça-feira, 3 de maio de 2011

Por que existe algo ao invés de nada?

Indagar sobre a origem do universo remete imediatamente à teoria do Big-Bang. O cosmo como o conhecemos teria se originado de uma situação de densidade extrema de matéria e energia há 13,7 bihões de anos, e teria começado a se expandir sem parar.

Mas o problema que quero abordar aqui é mais profundo do que "como se originou o que vemos à nossa volta". Por mais que uma teoria explique a origem de tudo o que vemos por meio de leis simples da física e equações matemáticas compactas, podemos sempre nos perguntar: mas por que essas leis se materializam na existência de um universo concreto? Pois as leis da física poderiam permanecer apenas como possibilidade e simplesmente não existir nada. As próprias leis físicas permitem essa situação! Por exemplo, a lei da gravidade diz que a matéria se atrai, mas ela não diz que a matéria tem que existir...

E podemos nos perguntar também por que as leis da física são essas aí. Poderiam ser outras. Por que não? Poderia inclusive simplesmente não haver lei alguma - não haver espaço, nem tempo, nem lei física, nem matéria, nem nada.

Por que existe algo ao invés de nada?

O cientista Max Tegmark tentou abordar essa pergunta imaginando que o universo é, na verdade, constituído apenas de relações matemáticas - é a Hipótese do Universo Matemático (ele escreveu um PDF acessível aqui). Normalmente, pensamos que existe matéria, objetos, energia, céu, terra, pessoas etc., porque é assim que percebemos o que há à nossa volta. Mas tudo o que existe são, em princípio, apenas relações. Relações matemáticas, diria Tegmark.

Mais: sua hipótese implica em que tudo o que não seja contraditório do ponto de vista matemático deveria necessariamente existir. Só não existiria o que é matematicamente proibido. Assim, sua teoria prevê a existência de inúmeros, certamente infinitos, multiversos. Em cada um, variariam as formas das relações matemáticas que o caracterizam - que se traduzem nas ditas "leis da Física". E viveríamos num deles.

A pergunta "Por que existe algo ao invés de nada" seria respondida então assim: se nada existisse, então teria sido escolhida apenas uma possibilidade, um possível conjunto de relações matemáticas (um conjunto vazio, no caso), dentre os infinitos permitidas matematicamente. Mas todas as possibilidades são, em princípio, equivalentes. Não haveria razão, segundo Tegmark, para supor que apenas uma dessas possibilidades fosse concretizada. Teríamos então que supor que todas elas existissem de alguma forma. Assim, vários multiversos necessariamente coexistiriam - em algum sentido da palavra "coexistir" -, inclusive aquele em que não há nada.

À parte a estranheza e a abstração, o argumento me parece poderoso. Só não sei se é tão natural assim achar que "não haver nada" é tão inaceitável frente a "haver necessariamente todas as possisbilidades matemáticas". Na verdade, o que me parece é que a questão "por que existe algo ao invés de nada" é intrinsecamente irrespondível pela ciência, por causa da própria natureza desta última.

Seria um problema inabordável cientificamente, que exporia os limites da ciência, assim como o problema da natureza da "autopercepção do eu", que comentei ontem. A conclusão é a mesma: nada impede que se possa abordar esse assunto de outros modos - metafísica, esoterismo, religião, especulação pura e simples etc. O preço que a ciência paga por adotar um método sistemático e rigoroso é que algumas questões simplesmente não podem ser abordadas por esses métodos.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

A consciência e os limites da ciência

Estava neste fim de semana pensando sobre os limites da ciência e sobre o problema da consciência humana, que os ilustra muito bem. Há vários estudos sobre as bases físicas da consciência, voltados à anatomia e à fisiologia do cérebro. No entanto, existe também a percepção pessoal que temos de nossas consciências, uma "autopercepção do eu". Por melhor que seja a abordagem científica, os modelos sobre as bases neurofísicas da consciência não se parecem em nada com essa autopercepção - pelo menos, com a minha.

A autopercepção parece ser algo integrado - no máximo, podemos identificar algumas instâncias nela -, e não algo constituído de bilhões de impulsos nervosos eletroquímicos. Mas não é só por isso. Se fosse, não seria problema: a água líquida também vista a olho nu não "parece" composta de moléculas. No entanto, a "cor", o "jeitão" dessa "coisa" que sentimos pela autopercepção parece não ter nada a ver com as descrições de suas bases neurofísicas. Se é que me entendem - a natureza da autopercepção do eu parece ser algo tão irredutível à análise que é quase impossível explicá-la com palavras.

Talvez isso tem a ver com a necessidade de definições operacionais em ciência. A ciência não trata da essência dos objetos, das coisas-em-si - isso é assunto da metafísica, quando muito. A ciência trata apenas do que pode ser observado pelos métodos científicos. Assim, quando a ciência tenta definir algum objeto de estudo, o que se faz é enumerar características que podem ser observadas por seus métodos (e/ou remeter a outros conceitos definidos anteriormente). Assim, definimos um elétron dizendo que ele tem massa de 9,11 x 10-31 kg e carga elétrica positiva de 1,602 x 10-19 coulombs. Não se diz o que ele é, mas como é. Sabe-se hoje que não é um corpúsculo no sentido tradicional, nem uma onda, nem nada que se conheça. O que é, então? Não se pode saber; pode-se apenas descrever suas características.

Essa restrição pode tornar intrinsecamente irredutíveis as duas abordagens - a científica e a pela introspecção, pela autopercepção. Também porque esta última é pessoal - não sei sequer se as outras pessoas compartilham do que sinto a respeito -, enquanto a ciência é baseada no conceito de compartilhamento das experiências (senão, suas teorias não seriam verificáveis!).

Essa e outras são questões que desnudam os limites da ciência. A ciência usa métodos rigorosos, mas o preço que temos a pagar é a limitação do que pode ser abordado por esses métodos. Há questões que não podem. E nunca vamos saber com precisão científica a resposta a elas. Pode-se abordá-las de outros modos - uma vez conversei com um cientista da computação que tentava investigar a autopercepção do eu por meio da poesia -, até com religião, se alguém quiser. Mas a ciência não as alcança, por sua própria natureza.